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ESCRITA SELVAGEM EM ACÇÃO. PERMISSÃO PARA SER LIVRE!

julho 2023

perguntas

Conheci-te numa gelataria na Spintex Road, a rua mais movimentada de Acra, provavelmente, há 14 anos, e não me lembro do nome da gelataria. Penso agora em todas as perguntas que te poderia ter feito, todas as perguntas que poderíamos ter feito um ao outro, não meia dúzia, mas centenas delas. Não seria não um simples encontro do qual sairíamos a sentirmo-nos completos estranhos. Achei-te muito arrogante, tu achaste que eu era uma Maria cheia de manias.

Gostas de gelado sequer?, eu teria perguntado. O que achas da Santíssima Trindade, baunilha, morango e chocolate? Tem-la no congelador? És tipo o Homer Simpson que tira o chocolate, deixando os outros dois sabores para trás para a mulher comer? Bem… então e se o chocolate também for o sabor favorito dela? Podemos passar a comprar gelado só de chocolate, por favor?

Preferes lamber cones ou és antes homem de copo e colher? Eu cá sou pessoa de colher, mas tu pareces não saber ao certo aquilo de que gostas.

Gostas de clima tropical? A mim, faz-me erupções cutâneas e odeio sentir que preciso de tomar banho a cada hora que passa. Preferes ventoinha ou ar condicionado? Eu não suporto AC, sabes, mas também não consigo dormir com a ventoinha ligada, não a considero ruído branco. E o que achas de duches à meia-noite ou às 3 da manhã? Porque podes ouvir-me lá de vez em quando. Levantas-te para me fazer companhia? Para me esfregares as costas?

És tipo de duche ou de banho? És “eco-friendly”? Ou teremos esta discussão daqui a 14 anos?

O que achas do tempo passado em frente a ecrãs? E quanto a ecrãs para as crianças? És daqueles tipos que mal chega a casa calça os chinelos e liga a TV para ver futebol, enquanto abre uma cerveja, depois outra, depois outra, depois outra, depois outra, como outros homens que tão bem conheço? E vinho? Aguentas-te com um copo ou dois? Vinho é mais a minha cena, sabes. Marisco e vinho branco ou uma tábua de queijos e vinho tinto.

Mas espera, vamos voltar às crianças. Não apenas sobre o tempo de ecrãs, mas o que achas de ter pezinhos andando pela casa e o som de fraldas a arrastar pelo chão? E as mamadas a meio da noite e as febres? Pesadelos de seres minúsculos e insónias? És forte o suficiente para isso? Sim, eu também achava que não era, mas afinal sou de uma fibra mais forte do que pensava.

Muito bem, e agora a conta? Quem vai pagar os gelados hoje? És do tipo cavalheiro ou o homem tímido que não sabe o que fazer num primeiro encontro? Ok, já percebi. Isso é amoroso. Vamos então rever estas questões daqui a 14 anos. Ainda não me lembro do nome daquela bendita gelataria na Spintex, onde te conheci.

                                                                                                      Publicado a 26/7/23
                                                                       Inspirado  no poema “Three Questions”,
                                                                                                                de Caitlyn Siehl




junho 2023

primavera

O dia é levado por cada coisa, passo a passo. E embora tudo pareça um fluxo, são passos. Abre os olhos, sente a agitação no peito, respira, observa as flutuações da mente, aconchega-te ao marido. São 7:00 da manhã. Vês como abraçar o marido é apenas um dos passos também? Nada de extravagante, apenas mais uma coisa que é levada pelo dia. Não deveria ser assim.

O dia é levado por passear os cães, levar as crianças à escola, comprar as batatas que me esqueci de comprar ontem, pôr lentilhas de molho, cortar legumes, provar picles e franzir-me sob o sabor do vinagre. Limpar cocó de cão, levantar a voz aos meus filhos, baixá-la ao hamster moribundo, cantar quando a tristeza bate, sair, olhar para as canas ali cortadas, no meio do caminho, porque desisti delas – o que importa construir a cerca? Ver os vasos que precisam de ser arranjados, mas onde não quero tocar – não entendo por que razão as pessoas dizem que mexer na terra é terapêutico. Eu não gosto da sensação. Ver os canteiros de flores vazios – aqueles que costumavam ter flores tão bonitas, as que não me lembro onde comprei. Se me lembrar, vou comprá-las novamente este ano. Ver o novo pessegueiro – no ano passado, o pessegueiro bebé morreu por falta de água. Porque me esqueci de o alimentar. Por isso, não queria que o meu marido comprasse outro. Mas ele aqui está, de qualquer maneira, pequeno, à espera de alimento, como qualquer outro bebé. Regar o limoeiro, admirar as oliveiras e imaginar-me deitada debaixo delas, coisa que nunca faço, embora tudo o que tenha de fazer seja abrir uma das portas e sair! Guardo isso apenas na minha imaginação. Quando é que me tornei uma criatura tão interior? Henry Thoreau disse que nem morto o apanhavam dentro de casa! Ainda me espantam as suas palavras: que passava três a quatro horas a caminhar, todos os dias. Os 20 minutos que ando ao ar livre todos os dias são com os cães – abençoados, fazem-me sair!

O dia é levado por cada coisa e eu sou levada pelo dia – digo isto no sentido mais literal da coisa, de ser levada na corrente ou na roda, mas também no sentido em que não sou a mesma pessoa ao fim do dia. Sou diferente daquele que acordou com flutuações na mente e deu-se conta da agitação. Há esperança para mim. Há uma maneira de começar de novo no dia seguinte que é cheia de outros passos, passos esses que estou a aprender a dar.

                                 
                                                                                                       Publicado a 28/6/23
                                                                    Inspirado no poema “In praise of Spring”,                                                                                                                  de Linda Gregg


maio 2023

generosidade

Também eu te quero dar a certeza de que consegues viver num mundo onde podes conhecer a mágoa, a dor, a cor da terra do cemitério, o desgosto, a doença e, ainda, seres feliz.

Quero dar-te a certeza de que podes viver tão aberto, que a luz te fluirá adentro como ouro, apesar de todas as quebras. Quero dar-te a certeza de que, embora o copo possa nunca estar completamente cheio, podes sentir-te tão cheio quanto possível, extasiado de felicidade; na verdade, podes transbordar de tanta plenitude e, de seguida, trazer outros contigo.

Quero dar-te tudo isto, apesar de eu própria estar ainda a aprendê-lo. Aprender que as rachas não são falhas, que o passado é o passado, mas fez o que sou hoje. Viver a vida artística sem vergonha e sem remorso, ser sensível e estar de bem com isso, não fazer o papel da mulher durona, não agir na perfeição. Aliás, tendo mais falhas e sendo o mais imperfeita possível, baixando a fasquia.

Quero dar-te a certeza de que baixar a fasquia é um caminho tão válido como qualquer outro. Que primeiros rascunhos, pausas e intervalos, momentos para refletir, são todos bem-vindos.

Não posso dar-te um mundo sem morte. O teu hamster morreu durante os poucos dias em que estivemos fora, e contar-te foi um momento tão terno. Foi mágico abraçar-te e sentar-me contigo, em silêncio, escutando as tuas perguntas. Escutando também a tua certeza: como sabias exatamente onde querias que ele fosse enterrado – sob a nespereira. O papá pegou numa caixinha de sapatos bonita, colocou um pouco de lã macia lá dentro, colocou o Ninja, fechou a caixa e enterrou-a, pondo um pauzinho a assinalar o local e também um papelinho que agora diz – RIP Ninja, 2023. Eu já o vi, mas tu ainda não. Durante alguns dias voltaste à tua infância ocupada e esqueceste tudo isto. Mas amanhã regressas a casa e vais vê-lo. Eu já te mostrei as fotos: a caixa de sapatos, o Ninja lá dentro. Foi quando finalmente aceitaste que ele estava morto, porque antes continuavas a perguntar se tínhamos a certeza de que ele não estava apenas a hibernar. Não, fofinho, eu toquei nele, ele não se mexe mesmo, disse o papá.

Não posso dar-te um mundo sem morte, mesmo sem a minha própria morte ou a do papá, mas quero dar-te a certeza de que, se te encostares bem ao luto, absorverás o seu poder. Isto não faz sentido algum, eu sei, e não tenho o direito de te pedir que acredites em mim neste assunto tão difícil, mas é exactamente isso que te estou a pedir – não importa o quão amarga seja a situação, encontra aquilo que sentes e apoia-te nisso ao máximo. Com todo o teu peso. Não poupes nenhum quilo, nenhum centímetro sequer. O que sentes irá falar contigo, prometo, de uma maneira que jamais ouviste. Escuta atentamente. Profundamente. Quero dar-te a certeza de que consegues escutar essa profundidade e, a seu tempo, compreendê-la. Sim, tu consegues.

                             
                                                                                                      Publicado a 11/05/23
                                                             Inspirado no poema “Impossible Generosity”,
                                                                                  de Rosemerry Wahtola Trommer



Abril 2023

O QUE ESTÁ PARTIDO…

… o guarda-chuva com a pequena cabeça de hipopótamo,

o tapete de ioga,

as pessoas em geral,

o meu coração, é claro,

o meu corpo desde o parto,

a unha do meu dedo mindinho,

o milésimo carregador barato de telemóvel,

as asas da abelha que resgatei da água,

a concha que o meu filho apanhou especialmente para mim.

Dividida está a minha consciência entre

o que penso, o que faço e o que digo.

O amor que deixei para trás,

a menina quebrada pelo homem sem juízo,

a cabeça do chuveiro e todos os entretantos.

Eu, acima de tudo, eu,

mas não poderia ser inteira se não tivesse

sido quebrada uma e outra vez.

O lápis que o meu filho quebrou de raiva,

assustando-me,

o canavial que dança, ensinando-me,

a moldura – mais uma vez nós os quatro no chão de azulejo.

O azulejo, o pequeno ramo no bico do pássaro

e minhas fracas costas.

Os meus sonhos, quebrados,

a bata de hospital.

Quão frágeis nos sentimos nas mãos uns dos outros.

As palavras que gostaríamos de poder retirar.


                                                                                                Publicado a 10/04/2023
                                                                           Inspirado no poema “What’s broken”, 
                                                                                                           de Dorianne Laux


Foto: ededchechine, Freepik

março 2023

por um momento

É um daqueles dias … tudo é estranho. Sabes… aqueles dias em que não sabes o que fazer contigo mesma e continuas a tropeçar em ti mesma, e a dizer a ti mesma: sai da frente!

É um daqueles dias que quero empurrar para longe… as costas gritam-me com dores, lembrando-me da negligência corporal dos últimos três meses. E agora aqui está, como máquina, implorando um pouco de óleo, um pouco de ternura.

É um dia oco. Tanto que podia fazer, mas resisto a tudo. Tudo bem. Eis uma grande diferença: nos últimos dias, fiz questão de poisar o maldito telefone. Manhãs inteiras a não olhar para o ecrã, mas antes fazendo todas as chamadas e respostas e mensagens durante uma hora específica, à tarde. Maravilhoso. Só que, hoje, voltei a ficar dormente, agarrei-o outra vez, compulsivamente, na esperança não sei bem de quê. Um e-mail abençoado ou uma mensagem de texto colorida? Um milagre em forma de WhatsApp? O que foi isto hoje? Talvez lhe chame tristeza, mas não é isso. Solidão? Ansiedade? É o tipo de dia com ansiedade, sim, quando espero algo, mas não sei o quê. E embora a manhã fosse tranquila e dedicada à quietude e à poesia, não sei como depois caí novamente no poço-sem-fundo do telefone.

É um daqueles dias em que admito: o telefone deixa-me fora de mim.

É um dia com coisas boas também. O meu filho, agora, tem o seu próprio telemóvel e foi andar de bicicleta com os amigos, depois das aulas. Pude ligar-lhe, pela primeira vez, para lhe dizer que ia para casa e estaria em chamada de zoom, não querendo ser incomodada. De facto, não é o meu telemóvel que é o demónio. Demónios são outra coisa, noutro lugar. Demónios estão na dormência que sinto a ver as notícias, mais um dia de guerra, mais um dia de subida dos preços – nada de novo –, mais um dia de famílias em perigo. Eu tenho de pegar nesta dormência e quase forçar-me a sentir qualquer coisa. Pelo menos a parar e a perguntar-me: estás mesmo a ouvir isto? Meses volvidos, estás mesmo nova e deliberadamente a ver estas imagens da velhota com as feridas abertas, cheias de formigas, maltratada no asilo que era suposto cuidar dela? Santidade e misericórdia não passavam naquelas imagens, apenas sofrimento, desespero (meu), e quem sabe o medo de quem, tremulamente, segurava o telefone para filmar tudo e publicar nas redes sociais. É um daqueles dias em que, de seguida, nos desdobramos todos em desculpas, mais ou menos boas, mais ou menos esfarrapadas.

Teria sido um daqueles dias bons para salvar aquela pessoa e devolver-lhe a integridade como ser humano. Um grande dia para salvar uma vida, diria um tal médico da ficção. Mas não houve tempo. Tudo tardou.

É um daqueles dias para desespero e medo. E esperança. Honestamente, é o tipo de dia que não queres ter, mas ele aqui está.

                                                                                                     Publicado a 1/3/2023
                                                                           Inspirado no poema “For a moment”,
                                                                                 de Rosemerry Wahtola Trommer

Foto de Lisa Tilse, We Are Scout (we-are-scout.com)

fevereiro 2023

bolhas de paz

1. Diz a ti mesma que nunca poderias escrever acerca de encontrar bolhas de paz em tempos dolorosos porque pareces nunca ter à mão um kit de emergência; embora já tenhas criado vários, parece que nunca os usas.

2. Tenta de qualquer forma.

3. Ok, vamos tentar.

4. Uma bolha de paz é o meu filho mais velho entrar no carro depois das aulas, articulando pela primeira vez que será cientista, médico ou cozinheiro. Quando lhe perguntam o que será quando crescer, normalmente diz “ainda não sei”. Por isso, isto foi uma grande surpresa.

5. Uma bolha de paz, a história de amor do meu filho mais novo, sobre a qual tenho escrito e que já vai em 20 pontos. O de hoje foi: – mãe, ela beijou-me umas 20 vezes. – A sério? Beijaste-a também? – Sim, mas só umas 10 vezes. – A pele dela é macia? – Sim. – Cheira bem? – Sim, cheira muito bem.

6. Bolhas de paz  acordar o meu filho mais velho de manhã. Eu a falar, a falar, a falar. Ele – mãe, chiiiiiu, podes calar-te? O meu cérebro ainda está em ponto morto e tu assim vais ligá-lo, e eu não quero.

7. Dois minutos depois, levanta-se e ri-se. Sabes mãe, sou tão desajeitado. Ontem à noite levantei-me para ir à casa-de-banho, mas as minhas pernas ainda não estavam a funcionar, por isso caí. E volta a rir-se.

8. Bolhas de paz – ele tem a leveza e o sentido de humor do pai, felizmente!

9. Ele a dizer-me, mãe, a minha professora de música desenhou uma flauta no quadro que mais parecia um tijolo! Não conseguíamos perceber nada do que ela estava a explicar. Eu ri-me um bocadinho e ela obrigou-me a tocar em frente da turma toda.

10. Ele podia ter ficado frustrado ou envergonhado com a situação, mas sabia que a culpa não era dele. A professora estava simplesmente a ter um dia difícil e ele viu isso. Encarou com ânimo leve, riu-se.

11. Tenho tanto a aprender com este jovem de 11 anos a quem adoro chamar filho.

12. Bolhas de paz – estes pequenos momentos, as coisas miniatura que nos escapam por entre os dedos na correria do dia-a-dia. As coisas que não quero perder.

13. Olha para isto – afinal, há mesmo bolhas de paz em tempos dolorosos. E eu acabei de escrever quase uma dúzia delas!

      
                                                                                                      Publicado a 3/2/2023
                                                                                 Inspirado no poema de Nikita Gill, 
                                                          “How to find pockets of peace in painful times”

janeiro 2023

a escuridão dentro de mim

O escuro cá dentro, o escuro em mim, o escuro que mais ninguém pode ver, está aqui, a sustentar-me. Estou quase obcecada com ele.

Escrevo sobretudo a partir de toda a escuridão em mim, não da luz. Escrevo do mau pensamento, da agitação, do medo, escrevo da barriga a dar horas e do solstício de inverno, de meias quentes e sentada no chão, de costas contra a parede. Escrevo da dureza, da rigidez, de pernas cruzadas, depois, crepitando, esticadas, de dores sendo aliviadas.

Escrevo da vida secreta que todos possuímos, escrevo da exaustão e do desespero, de pedaços partidos, lutas e rancores, traumas e dores, das feridas familiares que todos possuímos. Escrevo da miséria em mim, de dizer muitos sins, escrevo da confusão, de gavetas e armários desarrumados, falta de organização e planos, pilhas de roupa para lavar, roupas espalhadas nos quartos dos meus filhos, eu a queixar-me disso, mas roupas também espalhadas no meu quarto, por isso quem sou eu para falar sobre isso? Escrevo do frigorífico e da despensa quase vazios – estaria louca ao adiar as compras desta maneira? Falta de cebolas e batatas, massa e molho de tomate, reduzindo as opções de uma refeição a quase nada. Talvez devêssemos jantar fora.

Escrevo da vergonha e da culpa, de evitar o vislumbre natural do meu próprio corpo no espelho grande encostado à parede, mesmo quando o faço inconscientemente. Escrevo de cremes para o contorno dos olhos no pós-40, promessas de óleo de amêndoas doces e outros alisadores de pele. Escrevo do vestir-me o mais rápido possível, revoltando-me contra o deprimente espetáculo de estrias e covinhas de celulite. Escrevo dos cabelos grisalhos ganharem terreno aos lindos pretos, e recuso-me a fazer algo a esse respeito, por enquanto. Mantenho-me forte, por enquanto.

Escrevo de ser fraca, de não me manter firme, de não proteger os meus. Escrevo de mal-entendidos e desculpas, de segredos partilhados e promessas quebradas. Das estações do ano passado e velhos arrependimentos, ex-amantes, e um animal de estimação morto… que matei acidentalmente.

A lista poderia continuar, sem fim, com a falta de luz. A luz está aqui, claro, só que me provoca menos.

Escrevo de todos estes lugares escuros em mim, os lugares escuros que prefiro que o mundo – e eu – não vejam. Escrevo de honestidade.

                                                                                                           Publicado a 1/1/23
                                                                                 Inspirado no poema “Dark Praise”,
                                                                                   de Rosemerry Wahtola Trommer


Desenho do Pedro, 9 anos. O seu maior medo – ser enterrado vivo.

DEZEMBRO 2022

mISCELâNeA

Colecionar coisas era o superpoder da minha mãe. Ela recortava receitas.

A sua arte acumula-se na sala de estar. O que será feito dela quando ele morrer?

É um fardo para o meu irmão, uma vida destinada ao lixo.

O meu irmão disse que me levariam embora, se eu mostrasse aquilo na escola. E porque eu a amava tanto, não disse nada.

Os meus pais não teriam lutado por mim. Isso ter-me-ia destruído. Ela amava-me à sua maneira.

O meu pai nunca mais me bateu com tanta força. Eu tinha 8 anos.

Assim que me tornei mulher casada, foi negócio fechado. E nunca me fui embora.

Honro a história das bolachas com pepitas de chocolate.

Sonhei com a minha avó ontem à noite. Quando ela morreu, o seu cabelo transformou-se num inverno furioso.

O cheiro de adolescentes. Os meus primos não sabiam nada desta história.

Honro os 23 dólares que ela me enviou quando eu andava na faculdade. E se eu me permitir ocupar espaço suficiente nesta terra?

Depois de dois anos de COVID e cancro, vamos para a floresta, sentamo-nos e petiscamos salame e azeitonas para reabastecer.

Não tenho sido terrivelmente produtiva. Caminhar na natureza não vai aumentar a minha visibilidade. Tenho trabalhado na autoaceitação.

Que mal tem acordar tarde?

Sou digna de amor. O que significa isso para mim?

Já não preciso de me sentir culpada pelas quatro moedinhas que roubei quando tinha sete anos. Surpreende-me não ter me tornado delinquente.

Procurei filosofia oriental. Observo rebentos a brotar.

Pedi para me juntar à equipa, a sujidade entre os dedos dos pés, o suor nas costas, pensei que brincar à chuva era proibido.

Podemos reescrever as regras do feminino? Deixemo-nos de tretas. Já vi a minha filha de 6 anos encolher-se num grupo de raparigas – percebendo a realidade do que é ser-se mulher!

                                                 
                                                                                                     Publicado a 8/12/2022
                                                                           Peça escrita com recurso a frases de 
                                                                     vários participantes de grupos de escrita

NOVEMBRO 2022

tão pequeno
que mal reparei

Bebendo um café duplo num copo de whiskey, porque todas as chávenas de café estão na máquina de lavar loiça.

Finalmente encontrei o insecticida, quando já não há moscas da fruta na cozinha.

Estava tão entusiasmada que rotulei duas pastas com o mesmo nome, sem colocar sequer uma única folha dentro delas.

Pelo terceiro dia consecutivo, saí da cama pelo lado oposto ao dos meus chinelos.

Já tentaste assobiar contra vento forte? Eu já. Experimenta, vá.

Ela disse que o seu ex-marido “ficou muito calado de repente, levantou-se e saiu da sala, deixando para trás o telemóvel e o computador. Mais valia ter deixado o corpo também. Simplesmente, desapareceu.” E agora estou obcecada com esta imagem.

“Vou para o início de bolsos vazios. Talvez o que é possível seja suficiente” (T. de los Reyes, das Filipinas). Quero que isto seja verdade.

Conduzia lentamente na autoestrada, a 80 km/h, devido a uma tristeza profunda, quando o carro apitou, alertando-me “cansaço detectado. Faça uma pausa“, piscando o símbolo de uma chávena de café a fumegar. Talvez tivesse sido um bom remédio, mas não o tomei.

O despertador do meu marido tocou às 5 da manhã e eu quis expulsá-lo da cama de imediato. “Dá-me um minuto”, disse ele. “Estava a sonhar com motas. Deixa-me pelo menos estacionar!”

Nós os dois, sentados à mesa da cozinha, enquanto ele me lê a sua lista de desejos para o ano de 2017: “apoiar a minha esposa nos seus projetos; chegar aos 85 quilos até setembro; tirar a carta de mota.” Realizaram-se dois dos três.

Vi o número de e-mails que ele tinha por ler e entrei em pânico! Mas ele suspirou, desligou o telefone e foi dar um beijinho de boa-noite aos filhos, contando-me ainda uma piada antes de ir. A sério, como é que ele consegue? E como é que posso tornar-me assim tão relaxada também?

Ontem, tirei uma abelha de dentro de água e depois observei-a durante 15 minutos, para ter a certeza de que as asas secavam e que estavam operacionais. Quando contei isto a uma amiga, senti-me estúpida.

O poema diz: “Há uma época em que és mais tu mesmo” (Algo sobre as árvores, de Linda Pastan). Será que já passei essa época?

Também li algures que, se tivermos muita repetição, caímos numa rotina aborrecida; se tivermos demasiada mudança, perdemos o equilíbrio. Tendo mudado de casa e de países várias vezes, concordo plenamente.

Sim, ainda estou obcecada com isto: há uma época em que somos mais nós mesmos… Quando? Meu Deus, quando?

Ontem de manhã, o meu filho mais velho disse-me que “Mãe” é o verbo mais difícil de todos. E conjugámo-lo juntos.

                                                                                                       Publicado a 2/11/22

outubro 2022

FALTAM TUTORIAIS

Desculpa, não instruções. Não há vídeo. Mas saberás quando estiveres longe demais. Mapas, vídeos, são inúteis. A única bússola em que podes confiar sabes bem onde está.

Sais do quarto e à direita encontras o teu filho adormecido, tão lindo esticado na cama que facilmente podia ser uma estrela e tu não a verias se estivesses a olhar para um mapa, um mapa inútil. Em seguida, vai directa à cozinha e vê o homem a preparar café com três ou quatro filtros de papel e um coador azul. Não há máquina de café, nem cafeteira. No entanto, este é o melhor café que bebeste em toda a semana!

Repara como hoje as cores te parecem únicas e mais vivas. Será porque o dia que aí vem – embora parco em instruções – te parece excitante?

O meu bom amigo enviou-me uma mensagem: gostava de ir primeiro a casa do meu irmão e depois ir a um bom supermercado na cidade. Desculpa, não há vídeo, nem outras instruções. Mas a bússola do teu coração rapidamente te diz que o melhor é tirar o dia de folga para estar com o teu amigo. Vai buscá-lo ao aeroporto, paga-lhe um café e um pastel de nata, leva-o a casa para deixar as malas, leva-o a almoçar, leva-o às compras, e de volta a casa. A sua presença é inigualável. Foi um dia cheio, mas descontraído, espaçoso, com o tipo de sentimento que só se tem junto a árvores gigantes.

Desculpa, não há vídeo. Mas saberás se foste longe demais. A próxima paragem é a casa de alguém, onde ela está a dormir uma sesta antes de ir buscar o marido ao lar de idosos. Todos nós vamos para lá – não há mapa, os mapas são inúteis na velhice, mas a bússola dentro de ti diz: “vamos todos lá buscá-lo, talvez isso o faça o sorrir. Talvez ele goste da surpresa (se nos reconhecer, penso).”

Segue estrada após estrada, rotunda após rotunda – aqui os sinais de trânsito não são inúteis – esta cidade no fim de agosto pode ser um lugar perigoso. Chegar lá em segurança, esperar no portão onde a carrinha com a rampa recebe as cadeiras que vagarosamente rolam para dentro, entre despedidas e até-amanhãs, para levar os idosos de volta às suas casas depois de um dia passado com amigos, ou o que quer que lhes chamem – provavelmente apenas pessoas com quem são atirados diariamente sem que ninguém lhes pergunte as suas preferências. Facilita.

Pergunto à mulher – é este o portão? Diz que sim. O mesmo portão sobre o qual ela me escreveu há uns dias numa mensagem de whatsapp, onde alguns idosos estão do lado de dentro e outros – mais novos – estão do lado de fora. E disse que aquilo podia ser facilmente trocado, sabes, tudo isso: temos de ter cuidado porque facilmente os que estão aqui fora entram e os que estão ali dentro saem. O homem mais novo a quem ela dizia isto (mas não muito mais novo do que ela!) olhou-a, chocado, sem compreender, pois a ideia de ir parar a um lar parecia-lhe completamente estranha. É óbvio que ele pensou que estava longe de ser colocado num lar. Jovem e vibrante que ainda se sentia, a velhice não viria, nunca. No entanto, a mulher vê bem a mortalidade em si mesma e nele, e sabe que pode entrar naquele portão muito em breve, por isso ficou surpreendida que o homem não tivesse visto isso também!

Desculpa, não há vídeo. Nem instruções sobre como o cheiro muda. Como aquela casa há anos cheirava a bebé quando ela dava banho aos meus filhos, os vestia, os perfumava; depois cheirava a comida caseira e ao calor das refeições que tínhamos juntos. E agora cheira a velhice, a urina e a merda, enquanto ela muda outra vez fraldas num corpo frágil, mas gostaríamos que não tivesse de o fazer. A cama, o sofá e a TV estão agora estrategicamente colocados no primeiro andar, perto da casa de banho, mas nem isso é suficiente para aliviar as cargas de roupa que ela lava semanalmente para o manter limpo. Ela diz que tudo lhe cheira a urina a toda a hora e já não sabe se pode confiar no nariz. Digo-lhe metade da verdade, que o meu nariz está entupido, por isso não consigo cheirar nada.

Não há vídeo, desculpa, não há sinalização útil, mas assim que me sentei à mesa e vi a nova configuração da casa, adaptada às recentes necessidades da velhice – enquanto ela escondia a cadeira de rodas lá em cima para que ele não a visse antes de ela ter tempo de o preparar para aquela conversa – soube que a única coisa que podia fazer era pegar em metade das roupas que ela tinha trazido do quintal e começar a dobrá-las. Os homens lá fora a falar, pai e filho, numa conversa sem sentido governada por Alzheimer, enquanto o cão saltava que nem louco, e nós as duas sentadas à mesa, a dobrar, e eu notava o cheiro misturado de detergente e urina. Abstive-me de dizer que as roupas e a casa precisavam de um programa de lavagem mais forte. Sem instruções, como é que eu ia saber que não havia problema em dizer isso? Que não seria doloroso? Não há vídeo, mapas são inúteis, e a bússola do coração disse-me para ficar calada. Disse-me para me sentar à mesa de jantar e apreciar a refeição. Antes, disse-me para ver o homem a cozinhar qualquer coisa simples para o jantar enquanto eu punha a mesa. Abri a gaveta e tirei a toalha azul, mas logo vi a vermelha por baixo e pensei sim, a ocasião pede uma vermelha, mais ardente. Quem me dera que tivéssemos tirado uma foto, mas sem tutorial é difícil lembrar- me de tudo.   

                           
                                                                                                         Publicado a 1/10/22
                                Inspirado no texto de Maya Stein “Finding your way to Bodieu”

setembro 2022

PORQUE CONTAMOS HISTÓRIAS

… porque o pássaro pousou no telhado e não pude deixar de o ver e de olhar para ele

Porque olho para o pássaro e penso em várias histórias acerca de pássaros:

a. que os pássaros têm a sorte de poder voar

b. que os pássaros inspiraram o homem a criar o avião

c. que os pássaros são um símbolo de equilíbrio, como as suas asas trabalham em conjunto de forma tão perfeita

d. que a canção dos pássaros é um dos sons mais bonitos do mundo, em conjunto com o riso de um bebé e o sino da igreja numa manhã de fim de semana

e. que o meu filho chamava os pássaros do céu quando era bebé. A ama pegava nele ao colo e dizia-lhe para chamar os pássaros, “chama-o, vem pássaro, vem”. E ele estendia a sua mãozinha para o céu e chamava em inglês “bâda, come bâda”. E de todas as vezes nós sorríamos e ele realmente pensava que os podia chamar, e eu penso se ele alguma vez pensou porque é que eles nunca vinham até ele.

f. porque os pássaros voam e os meus filhos perguntavam-me porque é que nós não podemos voar como eles. E quando viam desenhos animados voadores, acreditavam que também podiam voar e tentavam desesperadamente fazê-lo, abanando vigorosamente os braços e pedindo-me que lhes construísse propulsores que os fizessem levantar voo, coisa que trouxe muitos momentos de diversão com garrafas de plástico, fita-cola e fitas de papel coloridas, amarelas e cor-de-laranja, para imitar o fogo da ignição.

Contamos histórias porque um amigo nosso tem Alzheimer e estamos a perdê-lo. É um eufemismo para “já o perdemos.” Ele já lá não está, nem por isso, sobra apenas uma outra coisa qualquer a que não sabemos dar nome.

Escrevemos histórias para nos lembrarmos que os tempos difíceis podem ser aqueles em que nos unimos mais – nós, marido e mulher, mais juntos que nunca para dar apoio a uma mulher que está a ver o seu marido à deriva num mar que ela não conhece.

Porque há dois dias, essa mulher passou por uma igreja de Lisboa e chorou, e a condutora do Uber perguntou-lhe se queria que parasse o carro para tirar fotografias ou apanhar ar, e a amiga confortou-a, dizendo-lhe que era bom chorar, que estava a deitar tudo cá para fora. Mais tarde, eu soube que ela conheceu o marido naquela zona da cidade, há muitos anos. E deu consigo a pensar como e quem ele era nessa altura e aquilo em que se transformou tão rapidamente. Para onde foi o tempo? O que fez o tempo? Nos últimos dois anos vimo-lo desaparecer. Esta manhã acordou, pediu 20 euros e saiu para o café, onde esperou por um pedreiro da sua imaginação. Depois pediu o divórcio, outra vez, e a sua esposa levou-o a ver um advogado, depois a uma consulta com o médico de família e depois para casa, onde ele bebeu 4 copos de vinho, tendo encontrado uma garrafa que estava escondida e aberto outra cuja existência a esposa desconhecia. Depois, insultou-a, como já é hábito por estes dias. Ao fim do dia ela estava exausta e ligou para nós, em meio-choro. Contou-nos esta história.

Escrevemos histórias porque é a única coisa que podemos fazer. Colocarmo-nos no papel, esperando que as nossas histórias façam sentido para quem as lê. Esperando que alguém estenda a mão e nos diga “oh, como te compreendo, sei bem, sim, eu também…”.

                                                                                                            Publicado a 2/9/22
                                         Inspirado no poema de Lisel Mueller “Why we tell stories”

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